"Nada sobre mim sem mim", sussurrou o açaí

2024-07-27 00:00:00

Por Juliana Licio*
Foto: Marcio Nagano

A frase "Nada sobre mim sem mim" ecoa a necessidade urgente de valorizar o conhecimento tradicional dos povos indígenas e comunidades locais sobre o açaí. Assim como o açaí, que possui uma história e um valor intrínseco para além de seu valor econômico, as comunidades que o cultivam e preservam há séculos têm o direito de participar ativamente das decisões que afetam seu futuro. 

A sociobioeconomia, para ser justa e sustentável, deve reconhecer e incorporar o conhecimento tradicional, promovendo o diálogo entre saberes e garantindo que as vozes daqueles que mais dependem do açaí sejam ouvidas e respeitadas.

O açaí possui uma importância multifacetada para os povos amazônidas, abrangendo aspectos culturais, alimentares, econômicos e ecológicos. Aqui destacam-se pontos importantes:

1. Aspectos Culturais:

Alimento tradicional: O açaí é um alimento ancestral, consumido há séculos pelos povos indígenas da Amazônia. Faz parte de suas tradições culinárias, rituais e festividades, sendo um símbolo de identidade cultural.

Saberes tradicionais: O conhecimento sobre o cultivo, manejo, colheita e preparo do açaí é transmitido oralmente entre gerações, representando um patrimônio cultural imaterial de grande valor.

Cosmovisão: Para os povos tradicionais e os povos indígenas, o açaizeiro é considerado uma árvore sagrada, com significado espiritual e papel importante na cosmovisão indígena.

2. Aspectos Alimentares:

Fonte de nutrientes: O açaí é um alimento altamente nutritivo, rico em minerais como cálcio, ferro, potássio e magnésio; é fonte de vitaminas A, B6, C e E; elevado teor de fibra; rico em antocianinas, pigmentos flavonoides que atuam no combate ao envelhecimento precoce e até mesmo na prevenção de alguns tipos de câncer É uma importante fonte de energia e nutrientes essenciais para a saúde das populações amazônidas.

Segurança alimentar: Na Amazônia rural e urbana, o açaí é um alimento básico, consumido diariamente, e fundamental para garantir a segurança alimentar, especialmente durante períodos de escassez de outros alimentos.

3. Aspectos Econômicos:

Geração de renda: A produção e comercialização do açaí são importantes fontes de renda para muitas famílias amazônidas, desde os extrativistas que colhem os frutos até os comerciantes que os vendem nos mercados locais e regionais.

Economia local: O açaí movimenta a economia local, gerando empregos e impulsionando o desenvolvimento de atividades relacionadas à sua produção, beneficiamento e comercialização.

4. Aspectos Ecológicos:

Conservação da biodiversidade: O açaizeiro é uma espécie nativa da Amazônia, adaptada às condições locais e importante para a manutenção da biodiversidade da floresta. Seu cultivo em sistemas agroflorestais contribui para a conservação do solo, da água e da fauna associada.

Sustentabilidade: O extrativismo sustentável do açaí, aliado a práticas de manejo adequadas, pode garantir a produção contínua do fruto sem comprometer a saúde do ecossistema amazônico.

O açaí é um elemento central na cultura alimentar amazônida, e tem relação com a cultura, saúde, economia e a natureza. Preservar o açaí e seu modo de produção tradicional é fundamental para garantir a segurança alimentar, a geração de renda e a conservação da sociobiodiversidade amazônica.

O impacto das mudanças climáticas

As mudanças climáticas estão impactando significativamente a produção do açaí, gerando insegurança alimentar em comunidades que dependem desse fruto para subsistência e renda. Diversos fatores climáticos estão contribuindo para essa situação:

Alteração no regime de chuvas: O açaí é uma planta adaptada a um regime de chuvas específico. A intensificação de eventos extremos, como secas prolongadas e chuvas torrenciais, prejudica o desenvolvimento da planta, resultando em menor produção e frutos de menor qualidade.

Aumento da temperatura: O aumento da temperatura média afeta o ciclo de floração e frutificação do açaí. Temperaturas mais altas podem levar à queda prematura das flores e frutos, reduzindo a produtividade.

Elevação do nível do mar: Em algumas regiões, a elevação do nível do mar está causando a salinização de áreas de várzea, onde o açaí é tradicionalmente cultivado. A salinidade do solo prejudica o desenvolvimento das plantas e pode levar à morte dos açaizeiros.

No estado do Pará, na última entressafra, a queda na produção do açaí teve graves consequências para a segurança alimentar das comunidades que dependem desse fruto. O açaí é uma importante fonte de alimento, fornecendo nutrientes essenciais e calorias. A redução na disponibilidade do fruto pode levar à escassez de alimentos e à piora da qualidade da alimentação, contribuindo para a desnutrição e outras doenças relacionadas à fome e à insegurança alimentar - quem não é sempre quantitativa. A falta da diversidade alimentar corrobora para o processo de transição alimentar e nutricional principalmente nas periferias das cidades amazônidas e entre as famílias de baixa renda.

Além disso, a produção e comercialização do açaí são importantes fontes de renda para muitas famílias. A queda na produção pode levar à perda de renda e ao aumento da pobreza, agravando a insegurança alimentar.

É importante ressaltar que muitas pesquisas sobre os impactos das mudanças climáticas na produção do açaí ainda estão em andamento. No entanto, as evidências disponíveis indicam que a situação é preocupante e exige ações urgentes para mitigar os efeitos das mudanças climáticas e para garantir a segurança alimentar das comunidades que dependem do açaí.

Por que salvaguardar o açaí?

Uma estratégia promissora para combater a insegurança alimentar na Amazônia é promover a produção sustentável do alimento, a restauração do solo e a conservação da biodiversidade, essa abordagem contribui para a segurança alimentar, o desenvolvimento socioeconômico e a sustentabilidade ambiental da região.

Uma maneira de salvaguardar o açaí e fortalecer o seu consumo, é por meio de estratégias para valorizar o consumo tradicional:

  1. Reconhecer e valorizar o conhecimento tradicional dos povos indígenas e comunidades tradicionais sobre o cultivo e manejo do açaí.
  2. Promover o diálogo e a troca de experiências entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico, buscando soluções conjuntas para os desafios da produção do açaí.

  3. Informar os consumidores sobre a importância do açaí para as comunidades amazônicas e sobre os impactos socioambientais da produção convencional.

  4. Incentivar o consumo de açaí produzido localmente, fortalecendo a economia regional e reduzindo a pegada de carbono do transporte.

  5. Promover o consumo do açaí em sua forma tradicional, como parte da culinária e da cultura amazônica, ou seja como acompanhamento às preparações salgadas sendo um dos três alimentos do prato tradicional: peixe (ou charque ou camarão), farinha e açaí.

O enfrentamento dos desafios e o investimento em políticas públicas de apoio são fundamentais para viabilizar a adoção da agricultura regenerativa em larga escala na Amazônia, garantindo o futuro da produção de alimentos e a preservação desse rico bioma.

A visão míope da sociobioeconomia que busca projetar o açaí como mero ativo econômico, ignorando seus profundos laços culturais, a complexidade dos impactos climáticos e a importância da produção tradicional para a economia local, é um desserviço à Amazônia e seus povos.

A busca por justiça alimentar na região exige uma abordagem holística, que valorize o conhecimento ancestral, respeite a relação intrínseca entre o açaí e a cultura local, e promova práticas sustentáveis que protejam a biodiversidade e fortaleçam a economia local. A produção de açaí não pode ser desvinculada de sua história, de seu valor cultural e do delicado equilíbrio do ecossistema amazônico. A verdadeira sociobioeconomia deve ser construída em parceria com os atores e as comunidades locais, reconhecendo e respeitando seu papel fundamental na produção e preservação do açaí.

*Juliana Licio é nutricionista, indigenista, mestre em Saúde Pública, pesquisadora com experiência de trabalho junto aos povos indígenas há 20 anos. É fundadora da Maniha, empresa que realiza estudos e diagnósticos relacionados à saúde e nutrição. Na Amazônia, há 15 anos atua em projetos e pesquisas com povos tradicionais e indígenas. Coordenou a Câmara de Comercialização da Sociobiodiversidade do Amapá. Integra a Coalizão pelo Impacto - Belém e a Rede Diálogos Pró-Açaí.